Blogue do livro "Na Rota do Yankee Clipper" - de José Correia Guedes @ Chiado Editora, Lisboa. Dezembro de 2012.

Prémio Jane Froman

Jane Froman , a cantora que ficou gravemente ferida no acidente de Lisboa , sofreu nada menos que 39 cirurgias até poder voltar a andar sem quaisquer ajudas . Apesar disso , viveu toda a vida sob o espectro da amputação da perna direita , a qual nunca recuperou das terríveis lesões sofridas em 1943 . Ainda em Lisboa , no Hospital de S. José , foi pela primeira vez confrontada com essa possibilidade , mas Jane Froman recusou enérgicamente a decisão dos médicos portugueses , provavelmente porque se sentia internada num "hospital medieval" , como ela própria diria mais tarde , numa entrevista . Mas a opção parecia ser a correcta , dado que nas décadas seguintes essa hipótese voltou a ser ponderada várias vezes .
A sua luta e a sua coragem levaram o Instituto de Reabilitação do Missouri , estado de onde Jane era natural , a criar um prémio com o seu nome para ser atribuído anualmente ao doente que mais determinação tenha revelado na ultrapassagem das suas limitações físicas . Apesar da cantora ter falecido em 1980 , o prémio ainda hoje continua a ser atribuído .

Os Comissários de Bordo

Era duríssimo o trabalho dos dois comissários de bordo que atendiam às necessidades dos passageiros e demais tripulantes dos Clipper . Estava a seu cargo o abastecimento de comida e bebidas antes de cada viagem e eram responsáveis por todo o serviço a bordo , sempre efectuado segundo as normas dos melhores restaurantes e hoteis da época . As refeições eram embarcadas parcialmente cozinhadas , sendo o "aquecimento" final efectuado pouco antes das mesmas serem servidas , mas já os "cocktails" e outros serviços de BAR eram produzidos na altura e podiam ser pedidos durante qualquer momento da viagem . Como a sala de jantar só podia servir 14 pessoas de cada vez ( Ken Follet , "Night Over Water" ) e havia sempre cerca de 40 passageiros , na versão "sleeper" , eram necessários três turnos de serviço , às 18 , 19.30 e 21 horas , no caso do jantar , por exemplo . Para o pequeno almoço e almoço o processo era idêntico . Acontece que o serviço era extremamente personalizado , sendo a comida e as bebidas servidas ao critério dos clientes , e as mesas "postas" com porcelanas e talheres de prata antes de cada serviço , para posteriormente serem "levantadas" e limpas . A época das bandejas com talheres de plástico ainda vinha longe .
Após o jantar dos passageiros , os dois comissários de bordo davam início ao serviço ao cockpit , tratando da alimentação dos outros tripulantes . Findo este capítulo era altura de transformar as poltronas dos passageiros em camas , para estes passarem a noite , e era aos dois comissários que competia fazer esses preparativos . Como se tudo isto não bastasse , eram ainda eles quem tinha que zelar pela segurança dos passageiros , em casos de turbulência ou qualquer emergência que pudesse acontecer , incluindo pequenos serviços médicos prestados em voo .
UFFF!!!!

Decreto-lei 32:331

A construção do Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo foi autorizada pelo Decreto-lei 32:331 , de 19 de Outubro de 1942 . Assinam o decreto , entre outros , Oscar Fragoso Carmona , António Oliveira Salazar e Duarte Pacheco .

Nos Tribunais

A revista "Time" de 23 de Março de 1953 , dez anos depois do acidente , dá conta do andamento ( muito lento , não é só em Portugal ... ) dos processos movidos contra a Pan Am por parte de algumas das vítimas , exigindo indemnizações por perdas e danos sofridos . A cantora Jane Froman reclamava dois milhões e meio de dólares ( uma imensa fortuna , há cinquenta anos ) como compensação pelo atroz sofrimento em que vivera nos anos que se seguiram ao acidente do Clipper , enquanto a acordeonista da sua orquestra , Gypsy Markoff , exigia um milhão pelos seus ferimentos . O ex-marido de Froman , Donald Ross , ficava-se por uns modestos cem mil dólares , mas os advogados da Pan Am contestavam todos esses pedidos , com a alegação que a Convenção de Varsóvia de 1929 limitava as indemnizações exigíveis por acidente aéreo a 8.291 dólares por pessoa , apenas . No entanto , a mesma Convenção determinava que estes limites apenas eram aplicáveis se se provasse que não houve negligência ou culpa por parte da tripulação ou da empresa . Nesse caso , qualquer valor podia ser exigido .
Ora , como a comissão de inquérito atribuiu a responsabilidade do acidente ao Comandante Sullivan , o caminho ficou livre para os tribunais decidirem quais os montantes a conceder aos sobreviventes e às famílias das vítimas mortais . No entanto , não deixa de me surpreender a forma como a responsabilidade foi atribuída ao piloto , uma vez que, na altura , ainda não existiam "caixas negras" com gravadores de voz e de parâmetros de voo , isto para além do facto de o Cte Sullivan nunca ter conseguido explicar a razão porque perdeu o controle do aparelho .

Os Motores do B314

Eram poderosos e muito sofisticados ( para a época ) os quatro motores que equipavam os Boeing 314 e que trabalhavam incansavelmente durante horas a fio , sem manifestarem problemas de maior . Tratavam-se dos "históricos" Wright Double Cyclone radiais , de 14 cilindros , arrefecidos por ar e debitando potências da ordem dos 1.600 cavalos , cada , tendo sido o primeiro motor a utilizar gasolina de 100 octanas . Havia um indicador de temperatura para cada uma das 56 cabeças de cilindros e era possível fazer alguns trabalhos de manutenção e afinação , em voo . Para isso , o mecânico "gatinhava" através de um túnel , situado no meio da asa , que dava acesso aos quatro motores .
As hélices descreviam um círculo de cinco metros de diâmetro e eram frequentemente polidas , para reduzir o atrito ( imagem de baixo ) , como fazem hoje os surfistas com as pranchas . O aparelho podia voar com dois motores do mesmo lado fora de serviço , tal como era exigido pelo processo de certificação , e os pilotos também tinham que demonstrar saber controlá-lo e fazer aterragens nessa configuração, durante os voos de treino .
Contráriamente aos motores de jacto , que demoram cerca de sete segundos a acelerar , os motores de explosão reagem imediatamente aos movimentos do "acelerador" , facto que levou os investigadores do acidente de Lisboa a interrogarem-se porque razão o Cte Sullivan não "borregou" ( abortou a amaragem ) quando se apercebeu que o Yankee Clipper estava prestes a bater nas águas do Tejo .



Correspondência

Envelopes com correio transportado no Yankee Clipper recuperados após o acidente de Fevereiro de 1943 . Note-se o carimbo com a informação "Damaged by Sea Water " .
Estes documentos encontram-se patentes no site www.filatelicamente.online .


A Vida a Bordo dos Clippers

O interior dos Clipper desta geração era extremamente luxuoso e confortável , um pouco a exemplo dos navios de passageiros da época , verdadeiros palácios flutuantes .
O Boeing 314 tinha dois "decks" , sendo o superior destinado ao cockpit e zona de lazer da tripulação , além de incluir também um compartimento para carga . Mas era no "deck" inferior que ficavam os compartimento destinados aos passageiros , cujas poltronas se transformavam em camas , à noite . Havia também zonas de confraternização , louças de porcelana , cálices de prata , lavatórios luxuosos e refeições quentes servidas por comissários vestidos a rigor . Um dos "lounges" servia de área de lazer , mas era transformado em restaurante à hora das refeições .
Para melhorar o conforto , os salões eram forrados com tapetes e as paredes cobertas com espessos cortinados , tudo com o intuito de "abafar" o ruído provocado pelos motores .
Os compartimentos , decorados alternadamente com dois esquemas de cores diferentes , podiam acomodar dez passageiros cada , durante o dia , mas apenas seis durante a noite , uma vez que então as poltronas se convertiam em camas .
Ficaram famosos os Clipper Cocktails servidos a bordo , uma mistura de Gin , Vermute e Grenadine , a que se acrescenta gelo moído , sendo o produto final servido num copo gelado .

Escalas Portuguesas na Rota Atlântica

(...) A escala da Horta estava dotada de duas embarcações especiais , uma vedeta rápida e um barco-tanque para reabastecimento dos aviões . Os Clippers amaravam e descolavam na zona marítima a leste da Horta , normalmente abrigada dos ventos predominantes de W e NW . No interior da baía amarravam a uma das bóias próprias e ali faziam o abastecimento , enquanto os passageiros desembarcavam e iam espairecer em terra . Entre os apoios prestados aos voos da PAA é de salientar o das telecomunicações e informações meteorológicas , ambos prestados pela nossa Marinha , que ali tinha uma eficiente Estação Rádio Naval , e um serviço de Meteorologia , no tempo em que só a Marinha e a Faculdade de Ciências executavam cartas sinópticas e efectuavam previsões .
(...) Mas os Clippers da Pan American acrescentaram durante anos ( 1937-1944 ) esse novo espectáculo que desviava dos seus afazeres os curiosos faialenses , para irem ao cais . Olhavam a manga de vento , viam o trajecto e a posição da vedeta rápida que se punha ao largo , em estado de prontidão , cada qual fazia a sua previsão sobre as manobras de amaragem e , por fim , os comentários críticos . Era o dia de "S. Avião".
Ficou registado um episódio inédito , em fins de 1939 , quando dois Clippers estacionaram vários dias na bóia , retidos por excesso de ondulação que não permitia a descolagem . Os passageiros dedicaram-se a um passatempo invulgar : criaram um jornal com o título "As Ondas da Horta " .
(...) Tendo sido concedida autorização pelo governo português aos EUA para construção de um aeroporto em Santa Maria , esta infraestrutura viria a ser utilizada pela PAA com os seus quadrimotores Lockheed L-749 nos voos transatlânticos , em substituição dos Clippers . Estes foram requisitados pela US Navy e 3 deles foram vendidos à BOAC .

- Excertos de "Recordando os Famosos Clippers" , texto da autoria do Comandante Silva Soares para a revista Sirius .

Para a História

Fotografia - com banda de música , em fundo - da tripulação que realizou o primeiro voo comercial transatlântico , em 29 de Junho de 1939 . O aparelho utilizado na ligação entre Nova Iorque e Lisboa era o Boeing 314 "Dixie Clipper" , comandado por R.O.D. Sullivan , o primeiro da esquerda , em baixo . Ele seria também o comandante do "Yankee Clipper" quando este se despenhou no Tejo , em Fevereiro de 1943 , tendo sobrevivido ao acidente para acabar por ser responsabilizado pelo mesmo .
Com mais de 14.000 horas de voo , 3.200 das quais aos comandos dos "Clipper" , Sullivan , com 50 anos , era um dos pilotos mais experientes da Pan Am . Mesmo assim , não conseguiu explicar porque razão , depois de ter colocado os quatro motores em "idle" aos 400 pés e ter "deslizado" suavemente para as águas do Tejo , súbitamente iniciou uma volta quando estava a poucos metros acima do rio . Uma das asas bateu na água e a tragédia aconteceu .
No inquérito , após o acidente , o Comandante Sullivan declarou que sentiu a aeronave "afundar-se" quando estava prestes a amarar e , em vez de acelerar os motores para recuperar altitude optou por um "pranchamento" ( inclinação lateral ) , decisão fatal que não conseguiu explicar . Uma vez confirmado que nenhuma avaria foi detectada após a análise dos destroços do Boeing , Sullivan assumiu a responsabilidade pelo acidente e abandonou a Pan Am e até o seu país , os Estados Unidos , nunca mais tendo voltado a sentar-se aos comandos de um avião . Segundo o relato da "Time" de Setembro de 1943 , constava que o infeliz piloto se tornara mestre de um navio costeiro português , circunstância que não consegui confirmar . A útima vez que se teve notícias de R.O.D. Sullivan estava ele na Liberia a trabalhar para a Liberian American Development Co , também como mestre de uma embarcação . Note-se que a esmagadora maioria dos pilotos dos Clipper provinha da Aviação Naval tendo , portanto , conhecimentos náuticos .
Final trágico para quem viveu uma das mais fascinantes carreiras profissionais que existiam na época , ser piloto de uma companhia de aviação internacional .

Na Horta

O porto da Horta , nos Açores , era utilizado como base estratégica de reabastecimento dos Boeing 314 , uma vez que estas aeronaves não tinham autonomia suficiente para fazerem a ligação entre Nova Iorque e Lisboa de uma só vez . Porém , a paragem no arquipélago trazia frequentemente problemas de difícil solução , nomeadamente as dificuldades criadas à descolagem pela ocorrência de ondas no mar . Limitados a operar em águas com altura de vaga inferior a um metro , os Clipper eram por vezes obrigados a esperar durante horas até que o mar acalmasse , para poderem descolar . Existem fotografias de dois ou mais Clippers ancorados no porto da Horta à espera de mares mais calmos para poderem seguir viagem . Isto dá uma ideia da dimensão do problema .
Sempre que um destes aparelhos pernoitava em qualquer lugar , uma âncora era lançada ao fundo do mar , para evitar que alguma corrente o afastasse do porto . Mesmo assim , era nomeada uma equipa de vigilantes para permanecer todo o tempo junto do Clipper , para actuar caso essa âncora , por qualquer razão , se soltasse .
Por vezes eram feitas várias tentativas de descolagem quando as condições de mar eram relativamente agitadas . Uma das funções do mecânico de voo era monitorar o acelerómetro do cockpit durante a corrida de descolagem e avisar o comandante quando este atingisse valores próximos dos 8G , ou seja , oito vezes a aceleração da gravidade . Este seria o limite da resistência estrutural da fuselagem ao impacto das ondas , segundo um texto publicado numa revista técnica da época . No entanto , não me foi possível confirmar este número no Manual de Voo do B314 , que o não menciona no capítulo "Limitações" .



Carta de Rota

Curioso exemplar de uma carta de navegação entre a Bermuda e a Horta , em que a rota é "construída" sobre uma carta de previsão meteorológica . Quando confrontados com este tipo de situação meteorológica - dominada por um centro de altas pressões - os pilotos planeavam o voo de forma a tirarem o máximo partido possível das condições de vento . Tratando-se de um anti-ciclone , a circulação das massas de ar faz-se no sentido do movimento dos ponteiros do relógio , pelo que este "desenho" de rota permitiria ter vento favorável durante quase toda a viagem . Apenas à chegada aos Açores a componente seria nula , ou perto disso , uma vez que a previsão aponta para a possibilidade de vento "cruzado" , ou seja , com uma incidência de 90 graus sobre a rota .
Segundo Ken Follet , no livro "Night over Water" , o voo do Clipper entre a Terra Nova e a Irlanda demorava nove horas , enquanto a viagem de regresso , na mesma rota , demorava mais de dezasseis . Isto dá uma ideia da influência que os ventos dominantes , no Atlântico Norte , exerciam sobre o planeamento das operações .

Chegada a Lisboa

A fotografia documenta o desembarque em Lisboa dos passageiros do "Dixie Clipper" após uma viagem que durou exactamente 24 horas e três minutos , incluindo uma paragem de cerca de uma hora e meia na Horta , para reabastecimento . O voo seguiria depois para Marselha .
Toda a estrutura de apoio existente no Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo foi instalada pela Pan American e destinava-se principalmente à operação dos Clippers . O mesmo se aplicava a todos os destinos que , na altura , eram servidos por estes hidroaviões . Esta complicada e caríssima logística , associada aos problemas causados pelas marés da Horta e pelo gelo frequentemente encontrado na costa norte atlântica , acabaria por ditar o fim das operações aeronavais em favor do serviço entre aeroportos metropolitanos em ambos os lados do Atlântico .

Um Relato

Texto de Blair Butterworth no Seattle Times de 22/03/2005 .

" A primeira vez que ouvi falar de George Kennan ( mais tarde embaixador dos EUA na Jugoslávia ) foi cerca de 1940 , quando o meu pai foi enviado para Espanha e Portugal onde , em colaboraração com os ingleses , se dedicava a comprar materiais estratégicos - tais como tungsténio - para evitar que estes chegassem às mãos dos alemães , claramente preferidos pelos governos da península ibérica durante a II Guerra .
Em Fevereiro de 1943 , o Yankee Clipper da Pan Am em que ele viajava despenhou-se no rio Tejo , em Lisboa ( este foi o voo em que a cantora Jane Froman viajava ; o meu pai partiu uma janela com o cotovelo e puxou-a , juntamente com alguns outros , para fora do aparelho ).
Ao ouvir as notícias do acidente , Kennan , na altura membro da nossa embaixada em Lisboa , deslocou-se imediatamente para o local onde os sobreviventes estavam a ser recebidos . Embora 25 dos 37 passageiros tivessem morrido , o meu pai , um excelente nadador , conseguiu sobreviver apesar de ter amarrado uma pasta cheia de documentos secretos aos seus pés , para garantir a sua segurança . Quando a lancha o desembarcou no cais - gelado e em choque - George Kennan pegou nele e na pasta e levou ambos para um hotel , chamou um "marine" para guardar o quarto , "enfiou" o meu pai numa banheira com água quente , mandou vir uma garrafa de "Fundador" e , então , usando clips e molas de roupa , pôs os documentos a secar ."

Cabo Ruivo , 1942

Registo dos movimentos de passageiros , carga e correio processados através do Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo em 1942 , vendo-se do lado direito os valores correspondentes à Pan American Airways . A companhia transportou 508 passageiros entre Lisboa e os EUA e apenas 6 entre Lisboa e a Horta . Curioso também referir que em Cabo Ruivo foram recebidas mais de mil toneladas de carga transportada nos Clipper da Pan Am .

Ponto de Não Retorno

Aproveito para esclarecer um simpático comentário inserido no post anterior pelo leitor "Carlos" .
A determinação do "ponto de não retorno" fazia , e faz , parte das "boas práticas" da navegação aérea . A diferença é que , actualmente , com o benefício de sistemas de navegação apoiados em tecnologia GPS , basta carregar numa tecla do FMGS para saber qual a distância , o tempo e o combustível necessário para chegar ao aeroporto mais próximo , em caso de emergência . Na anterior geração de aviões havia que fazer cálculos complexos e relativamente demorados para chegar à mesma conclusão , possívelmente com alguma margem de erro .
O "ponto de não retorno" corresponde ao momento em que o avião se encontra equidistante , em termos de tempo de voo , de dois aeroportos de rota susceptíveis de serem utilizados em caso de emergência . Em condições teóricas de vento nulo , este ponto corresponderia a metade da distância entre os dois aeroportos em causa , mas como o vento existe e costuma ser forte , há que ter em conta esse factor para determinar qual o destino a tomar , em caso de necessidade . Assim , uma vez passado o "ponto de não retorno" o avião terá que prosseguir para o aeroporto de rota seguinte , ficando impedido de voltar para trás , aconteça o que acontecer .
Sobre a possibilidade de os Clipper voarem , por vezes , cem metros acima do nível do mar para evitarem os ventos fortes de altitude , não posso confirmar tal procedimento . Nada disso consta do Manual de Voo do Boeing 314 como prática recomendável , mas admito que fosse verdadeira . Lembro que a esmagadora maioria dos pilotos destes aviões provinha da aviação militar e que , na altura , decorria a II Guerra Mundial . Portanto , era mais que provável que , por vezes , fossem adoptados procedimentos não-standard para resolver problemas que surgissem durante a viagem .
O voo a muito baixa altitude aumenta exponencialmente os consumos de combustível e envolve alguns riscos , nomeadamente em caso de turbulência , pelo que só deveria ser adoptado em caso de absoluta necessidade .

O Carimbo

Em Junho de 1939 teve lugar o primeiro voo comercial transatlântico da História , protagonizado pelo "Yankee Clipper" o qual , além de passageiros e bagagem , transportava também correio . Durante a escala na Horta as autoridades locais decidiram criar um carimbo comemorativo da efeméride para marcar todo o correio que , pela primeira vez , atravessava o Atlântico , encomendando a um artífice local a produção do mesmo . Tudo correu pelo melhor e as cartas com o carimbo desse dia histórico são hoje ávidamente disputadas pelos coleccionadores , só que ... Vejam bem . O avião representado no carimbo parece ser um DC3 Dakota , em vez do Boeing 314 que , de facto , inaugurou o transporte aéreo comercial transatlântico . Acontece que os DC3 eram vistos frequentemente nos Açores , nomeadamente nas Lajes , pelo que foi esse o modelo escolhido por quem fez o molde , em vez do Yankee Clipper , que ninguém conhecia .

Limitações e Curiosidades

Estas são as velocidades constantes do "placard" instalado no painel frontal do B314 , que revelam uma velocidade de cruzeiro relativamente baixa e a incapacidade do aparelho em manter altitudes superiores a 7500 ft em caso de falha de um dos motores . Quer isto dizer que , nessa configuração , os Clipper não poderiam sobrevoar a Ilha do Pico , nos Açores , cuja altitude é superior a 7700 ft .
Mas existem outras particularidades na operação destas aeronaves . Vejam esta , por exemplo , retirada dos manuais de operações da Pan Am .
"Qualquer hidroavião tem problemas na operação com ventos cruzados . O vento irá fazer com que a asa "upwind" ( do lado de onde o vento sopra ) levante e , em consequência , a asa oposta tenda a tocar na água e , num B314 , se isto acontecer , a hélice do motor exterior dessa mesma asa também mergulha , dobrando-se imediatamente , ficando inutilizada . A Pan Am adoptou um sistema que consiste em enviar os tripulantes extra ( extra crew ) para o túnel de acesso aos motores , situado no interior da asa "upwind" , de forma a criar "lastro" suficiente para que esta não levante . O local é extremamente ruidoso , mesmo com potências de motor reduzidas , mas é necessário manter o motor exterior "upwind" em regime máximo para compensar a deriva causada pelos três estabilizadores verticais , que tendem a virar a proa do hidro na direcção de onde sopra o vento . Os conhecimentos de marinhagem são muito importantes nestas condições pois , apesar de tudo , estamos a tratar de um barco ... voador ".

Ainda Jane Froman

A prova que Jane Froman não era uma cantora qualquer está no facto de a prestigiada revista Life lhe ter concedido uma capa em 1938 , altura em que a cantora era já um valor seguro do showbizz americano , e que só não conquistou Hollywood devido a um problema de gaguez que a limitava enquanto actriz .
Mas recuperemos mais um relato do acidente que quase lhe tirou a vida , no Tejo , em 1943 .
... "Durante cerca de uma hora , os feridos sobreviveram agarrados aos destroços do Clipper enquanto aguardavam a chegada de socorros . Das 39 pessoas a bordo só 15 sobreviveram . Todos os passageiros que estavam sentados à volta de Jane Froman morreram e a cantora seria perseguida durante toda a vida pela circunstância de ter trocado de lugar com Tamara Swann , um dos elementos do seu grupo musical , pouco antes do hidroavião se desintegrar . Tamara não sobreviveu e Jane Froman lembra-se de ter ficado a segurar a sua perna direita com quanta força tinha porque lhe parecia que esta se ia separar do corpo , tal a dimensão dos ferimentos .
Os feridos seriam recolhidos por um barco de pesca e transportados para um hospital que , claramente , não estava preparado para tantos e tão graves feridos . Jane teve que esperar até à manhã seguinte para ser operada , e ainda teve que lutar para evitar que os médicos portugueses lhe amputassem a perna direita , com lesões muito graves .
Mais tarde , sózinha , ferida e perdida num País estranho , Jane Froman chegou a questionar a sua vontade de viver . Mas logo que ganhou forças , embarcou num navio de carga para os Estados Unidos , onde sofreria nada menos do que 39 (!) cirurgias até poder voltar a andar normalmente . Graças à intervenção do presidente Roosevelt , uma droga experimental chamada "penicilina" foi admnistrada sem restrições à cantora , o que muito contribuiu para a sua recuperação . Gradualmente Jane foi retomando a sua actividade artística , ao mesmo tempo que lutava contra uma dependência de analgésicos , a qual durou até 1949 , seis anos após o acidente . Em 1961 retirou-se dos palcos e casou pela terceira vez , tendo vivido tranquilamente até 1979 , altura em que sofreu um grave acidente de automóvel , o que lhe veio agravar as lesões antigas causadas pela queda do Yankee Clipper . Morreria pouco depois ."
Chicago Tribune

Diário de Lisboa , 23/02/1943

Relato do acidente escrito pela pena emocionada do jornalista do Diário de Lisboa que fez a respectiva cobertura . Na altura , esta tragédia não mereceu mais do que dois pequenos "linguados" inseridos em páginas diferentes do saudoso DL . Nos dias de hoje , isto daria assunto para encher várias páginas de jornal , durante vários dias , e para muitas horas de reportagem na televisão .

Escala nos Açores

Mais uma belíssima imagem obtida a bordo de um Clipper B314 durante a aproximação ao porto da Horta , escala intermédia na ligação Nova Iorque/Lisboa , e que suscitou o seguinte comentário ao Cte Antolin Teixeira , meu amigo e colega , "açoreano" por paixão e vocação : "A ilha do FAYAL, vendo-se a bombordo, ás 10hrs, o Monte da Guia, ás 11hrs o Monte Queimado e a cidade da Horta" .


Escrevia um dos pilotos , na altura : "Uma das operações mais complicadas era na Horta , um porto nos Açores . Trata-se de um pequeno porto rodeado de montanhas. As aterragens podiam fazer-se em direcção aos montes , mas as longas "corridas" de aceleração e as reduzidas razões de subida obrigavam a que as descolagens se efectuassem em direcção ao mar aberto . O B314 estava limitado a operar com ondas até um metro de altura , devido a razões estruturais . Existem muitas fotografias de diversos B314 aguardando no porto da Horta que as condições do mar melhorassem para poderem descolar . Lembro-me claramente da perícia com que o nosso pessoal local se movia junto dos aparelhos , de forma a evitar que o fino revestimento da fuselagem se danificasse . "


Hidroestabilizadores

Um dos maiores riscos inerentes à operação de hidroaviões é a possibilidade de contacto da ponta das asas com a água , durante a amaragem e descolagem . Foi assim que o Yankee Clipper se desintegrou , quando tentava pousar no Tejo .
Os técnicos da Boeing desenvolveram um sistema engenhoso para tentar minorar os riscos da operação "marítima" , integrando na fuselagem dois hidroestabilizadores , estruturas paralelas às asas e colocadas sensivelmente sobre a "linha de água" . A sua função principal era aumentar a estabilidade do aparelho quando este estava a flutuar , nomeadamente em condições de mar agitado , circunstância que em muito aumentava a probabilidade de contacto devido às oscilações laterais . No entanto , os hidroestabilizadores foram também aproveitados para alojarem quatro tanques de combustível , o que permitiu dar a estas aeronaves autonomia para voos transatlânticos , tornando-se esta a sua função secundária . Além destes , o B314 dispunha de mais dois tanques de combustível nas asas , que só era consumido depois dos tanques dos estabilizadores estarem vazios .
Outra forma curiosa de aumentar a estabilidade , após a amaragem , era abrir umas válvulas nos estabilizadores que faziam com que estes se enchessem rápidamente de água ( o combustível já tinha sido gasto , na viagem ) de forma a funcinarem também como "lastro" .
Era complexa e perigosa a operação deste tipo de aeronaves , como se constata pelo número relativamente elevado de acidentes ocorridos na altura , o que fez com que logo no pós guerra os aviões de "terra" ocupassem o seu lugar no transporte aéreo , para não mais o largarem .

Charles Lindbergh ... no rio Minho !!!

Depois da sua heróica travessia a solo do Atlântico Norte , em 1927 , Charles Lindbergh transformou-se num herói nacional e passou a ser solicitado para apoiar e aconselhar toda a espécie de empresas associadas à aviação . A sua ligação com a Pan American durou 45 anos , tendo sido o principal conselheiro da companhia de aviação que Juan Trippe transformou na primeira transportadora global . Além de avaliar e estudar novos modelos de aviões , Lindbergh também se dedicou à prospecção de novas rotas , susceptíveis de exploração comercial .
Nessa condição , Anne e Charles Lindbergh fizeram uma série de viagens através do Mundo , tripulando um hidroavião Lockheed Sirius "Tingmissartoq", tendo percorrido a Europa e o Atlântico em 1933 , preparando a futura rota dos Clippers entre Nova Iorque e Lisboa , com continuação para Southhampton e Marselha . Foi numa dessas viagens exploratórias que o casal Lindbergh se tornou notícia do semanário "A Ordem" de 13/11/1933 , ao pousar no rio Minho devido ao nevoeiro . Curiosa a referência ao local onde se hospedaram , Valença .
Nos anos 90 , foi inaugurado um monumento no local do pouso , em Friestas , para celebrar o acontecimento . Trata-se de uma escultura de Alípio Nunes , que consiste numa estrutura de ferro montada numa pirâmide de granito .




O hidroavião Lockheed Sirius , na versão "Tingmissartoq" , utilizava um motor Wright Cyclone SR1820-F2 , cuja evolução daria origem aos motores utilizados mais tarde nos Boeing 314 "Clipper" , os Wright Cyclone 709C-14AC1 de 14 cilindros .

Nota - Agradeço ao meu amigo José Cunha a descoberta desta notícia de "A Ordem" , uma verdadeira preciosidade .

Kenny , foi ali o acidente !

Numa noite quente de Julho de 1999, o local onde foi o Aeroporto de Cabo Ruivo, chamado agora Doca do Parque das Nações, foi palco dum concerto de “Toots” Thilemans, em harmónica , e Kenny Werner no piano. Um duo que nessa noite não demorou muito, pois “Toots” tinha comido seis pratos de feijoada brasileira e ao terceiro tema disse que Kenny ia interpretar um tema a solo, retirando-se para os camarins.
Kenny tocou quatro temas sozinho, entre eles, “With a Song in My Heart”, até saber que Thielemans não voltaria ao palco, por indisposição gástrica. Entretanto já o 112 tinha passado para os camarins para assistir o “queixoso” belga.
Werner tocou mais dois temas e o concerto acabou em “melodia interrompida”, mas sem perder nenhuma qualidade.
Dirigi-me aos camarins, com o produtor Paulo Gil, para falar com os músicos e saber como estava o doente, que se passeava com toalhas enroladas ao pescoço e queixando-se amargamente das asneiras gastronómicas que tinha feito.
Mas não foi só isso que me levou ao “backstage”, eu quis dizer a Kenny Werner que o palco se situava na doca que fora o Aeroporto de Cabo Ruivo e da ligação do tema “With a Song In My Heart”, com os Clippers da Pan American, que aí amaravam.
Contei-lhe a história do acidente de Fevereiro de 1943, da presença entre os feridos da cantora Jane Froman e do filme “With a Song in my Heart”, interpretado por Susan Hayward. Falei-lhe também do tema “I Will Walk Alone”, relativo à luta de Froman para sair da cadeira de rodas e apontando para as águas negras do rio à noite, disse-lhe: “Kenny, it was there, the crash” (Kenny foi ali o acidente)
Passado um ano Kenny Werner voltou a estar entre nós, para tocar em Setúbal e no Hot Club, em Lisboa.
Na primeira noite dos dois concertos no Hot, Kenny dedicou-me “With A Song In My Heart”, e lá me fez vir as lágrimas aos olhos…


António Rúbio
Nota do editor : Na barra lateral estão agora disponíveis vídeos do YouTube com a música do filme .

Uma Questão de Lemes

No dia 7 de Junho de 1939 , o piloto de testes Eddie Allen fez o primeiro voo experimental com um B314 , na altura dotado de apenas um plano vertival com leme de direcção , como se verifica na primeira das imagens junto . Logo após a descolagem , Eddie Allen verificou que o avião "não voltava" quando se accionava esta superfície de controle . Note-se que , nestes aviões , o controle direccional era realizado pelo leme e não pelos "ailerons" , como acontece actualmente . Para o Clipper poder regressar ao aeródromo foi necessário usar potência assimétrica nos motores , ou seja , para virar à esquerda houve que reduzir as rotações dos motores desse lado e enquanto os do lado direito ficavam a funcionar a um regime mais elevado , e vice versa .
Para tentar resolver este problema , o voo seguinte foi executado com um modelo que adoptou uma cauda dupla , dois planos verticais com lemes de direcção , mas os resultados também não foram encorajadores . Finalmente , foi encontrada a solução para os problemas direccionais do B314 com a adopção de três planos verticais , sendo um fixo ( o plano central ) e dois móveis ( os laterais , equipados com lemes de direcção ) . A juntar a tudo isto havia ainda um "leme de água" ( water rudder ) que era utilizado em manobras de baixa velocidade quando o aparelho estava a navegar .
Os comandos de voo eram exclusivamente mecânicos , nestes aviões , e era necessário exercer uma força muscular considerável para os actuar , apesar dos compensadores ( trim tabs) que eram utilizados para facilitar essa tarefa .




Ementa

O serviço a bordo dos Clippers era exclusivamente de "Primeira Classe" , aqui referida como "Special Business" . As refeições eram préviamente cozinhadas a 90% , depois congeladas , e os 10% finais do processo eram realizados a bordo , imediatamente antes do serviço . Isso permitia servir os pratos quentes com a mesma frescura como se tivessem acabado de ser cozinhados . Nalguns casos e em determinadas linhas onde havia escasso apoio logístico , competia aos "stewards" a compra dos alimentos a serem cozinhados , tarefa que executavam durante as escalas e estadias . Este processo garantia a qualidade e diversidade das refeições .

R. O. D. Sullivan

Ao alto , na imagem , R.O.D. Sullivan ficaria duplamente ligado à história da operação dos Clippers no Tejo , na glória e na tragédia . Em 1939 chefiou a tripulação do Dixie Clipper na primeira viagem comercial transatlântica , que ligou Nova Iorque a Lisboa , e em 1943 estava aos comandos do Yankee Clipper quando este se despenhou no Tejo . Seria um dos sobreviventes do acidente , mas acabaria por ser afastado da Pan American por suspeita de "técnica de pilotagem inadequada" .

Diário Popular , 23 de Fevereiro de 1943

Curiosa primeira página da edição de 23 de Fevereiro de 1943 do infelizmente já desaparecido "Diário Popular" , em que a notícia do desastre do Clipper surge ao lado de um texto com previsões científicas para um futuro distante com o título "Surgem Milagres", onde se especula sobre "o prolongamento da vida normal , a cura de todas as doenças e ... os telefones portáteis ." Se exceptuarmos a ultra optimista "cura de todas as doenças" , as restantes visões confirmaram-se , o que é verdadeiramente notável se atendermos ao facto de tudo isto ter sido escrito há mais de 65 anos !!!
Nos jornais de então é também curioso o facto de todos dedicarem alguns parágrafos apenas às notícias do acidente , ficando a maior parte dos textos relativos à tragédia com a missão de darem conta das inúmeras entidades oficiais que marcaram presença no local ou se fizeram representar . Retrato de uma época , sem dúvida .

New York Times , 2 de Março de 1948

... "Jane Froman , a célebre cantora da rádio que estava entre os 39 passageiros com destino a Londres , de repente viu-se em dificuldades para se manter a flutuar no Tejo , após o acidente . O seu braço direito e a perna esquerda estavam fracturados e temporariamente inutilizados . Foi então que sentiu um braço forte envolvê-la e alguém falar : "é o seu velho amigo , Burn ."
Jane Froman reconheceu John Burn , um dos pilotos do Clipper , como tendo sido o seu salvador . A tragédia causou vinte e quatro mortos .

Agora , cinco anos passados , a história assume contornos de conto de fadas após o anúncio de que Miss Froman e o Comandante Burns irão casar a 12 de Março , na Florida .
John Burn , que tem 33 anos de idade e é hoje piloto da Pan Am para as linhas da América do Sul e Caraíbas , viu Jane Froman pela primeira vez há três anos , quando a visitou num hospital de Nova Iorque após uma das muitas operações a que ela foi submetida para corrigir as fracturas causadas pelo acidente . O próprio Burn sofrera lesões na coluna vertebral , mas recuperou .
De momento a senhora Froman tem uma acção pendente contra a Pan Am , no valor de um milhão e dez mil dólares , e divorciou-se recentemente de Donald Ross , um industrial de cosméticos que também viajava no hidro acidentado .
A última operação de Jane Froman obrigou-a a ficar na cama durante seis meses mas parece ter sido muito bem sucedida . Os médicos que a operaram esperam que , daqui a mais seis meses , ela já será capaz de andar sem recurso a muletas . "
Nota - John Burn viria a ser responsabilizado por um outro trágico acidente , em 1952 , no qual perderam a vida 52 pessoas , e abandonou a Pan Am .

A Primeira Viagem

A gravura documenta a chegada a Lisboa do primeiro voo transatlântico , com passageiros , da História da Aviação Comercial , em 29 de Junho de 1939 . O "Dixie Clipper" completou a ligação Nova Iorque - Lisboa , via Horta , em 23 horas e 53 minutos , trazendo a bordo vinte de dois passageiros e onze tripulantes sob o comando de R. O. D. Sullivan , o mesmo piloto que estaria aos comandos do "Yankee Clipper" quando este se despenhou no Tejo , em Fevereiro de 1943 .
Os passageiros pagavam 309 dólares cada pela viagem até Lisboa e $375 até Londres ou Marselha , tendo direito a todos os requintes que um serviço de primeira classe podia proporcionar . Segundo relatos da época , só os "rich and famous" tiveram lugar nesta viagem , circunstância que haveria de manter-se nas viagens seguintes , uma vez que este era um dos grandes trunfos da visão comercial do Presidente da Pan Am , Juan Trippe . Voar num Clipper era o expoente máximo do "glamour" e da notoriedade social no início da década de 40 , pelo que era frequente ver milhares de pessoas a assistir às partidas e chegadas destes voos , para verem os aparelhos e , principalmente , quem neles viajava .

A tripulação do primeiro voo comercial transatlântico da História era formada por :

Comandante R.O.D. Sullivan , O/V ( Oficial de Voo ) Gilbert Blackmore , O/V Robert Fordyce , O/V Benjamin Harrell , M/V (Mecânico de Voo ) John Fiske , M/V Melvin Anderson , M/V Stefen Kitchell , R/O (Radio Operador ) Harold Lambert , R/O Harry Drake e os dois Comissários de Bordo , Bruno Candotti e John Salmini .

A Rota de Inverno

Há séculos que é conhecido que os ventos dominantes , no Atlântico Norte , "correm" de Oeste para Leste , ou seja , da América para a Europa , tornando-se mais intensos durante o Inverno . A título de exemplo , direi que com os aviões actuais (A330/340) a viagem Lisboa-Nova Iorque pode demorar uma hora e meia mais do que a viagem Nova Iorque-Lisboa , mas estes valores podem variar substancialmente para mais ou menos . Claro que este é apenas um exemplo ilustrativo , uma vez que os B314 e Airbus não são comparáveis , até porque enquanto os primeiros não voavam acima de 13 mil pés , os aviões actuais "frequentam" níveis de voo de 40 mil , onde as correntes de vento são muito mais intensas .
Assim , a partir de 1941 , foi necessário "descer" um pouco no mapa para fazer a viagem de regresso de forma a não comprometer a autonomia de voo , durante o Inverno . Os Clippers partiam de Lisboa em direcção a Bolama , na Guiné , donde navegavam "paralelamente" ao Equador até Trinidad , nas Caraíbas , seguindo para Porto Rico e , finalmente , Nova Iorque . Por vezes , era necessário fazer uma paragem intermédia na Bermuda , então colónia inglesa , para que as autoridades fizessem uma "inspecção de guerra" a passageiros e carga .

Nota - As manchas que se vêem na imagem , retirada hoje do Weather Channel , correspondem a formações meteorológicas , sendo as tempestades representadas a cor de laranja e a chuva a branco .

New York Times , 24 de Fevereiro de 1943

... " Continuam desaparecidas vinte pessoas , que se julga estarem presas na carcaça do Clipper ou então terão sido levadas pela corrente do Tejo . Os destroços do avião ficaram à vista durante a maré baixa , com as duas partes principais separadas por centenas de metros . Uma parte do cockpit veio à tona durante a tarde .
O Comandante R.O.D. Sullivan , responsável pelo hidroavião e um veterano de travessias transatlânticas , que está internado no hospital , não encontrou uma explicação para o acidente .
O Clipper mergulhou subitamente na água quando se preparava para pousar e afundou-se em questão de segundos . O ar estava saturado de electricidade , disseram responsáveis locais , mas o vento era fraco e práticamente não chovia , no momento em que tudo aconteceu .
A forte corrente prejudicou a busca inicial e um corpo não identificado deu à costa em Paço de Arcos , doze quilómetros a jusante de Cabo Ruivo .
Dois sacos de correio foram encontrados pela polícia marítima e uma mala diplomática estava a ser cuidadosamente procurada . Segundo outra informação , uma mala de couro vazia , com as iniciais "J.R." , foi encontrada em Cacilhas e tinha sinais de ter sido forçada e o seu conteúdo roubado .
O presidente Oscar Carmona e o Primeiro Ministro Salazar enviaram os respectivos secretários a visitar os sobreviventes nos hospitais , oferecendo a sua simpatia e toda a assistência possível .

Entre os desaparecidos contam-se o escritor Ben Robertson e o correspondente de guerra Frank Cuhel , na imagem ."

O Boeing 314 em Números

Informação recolhida do texto "Recordando os Famosos Clippers " , da autoria do Comandante Silva Soares , um dos poucos pilotos portugueses ainda vivos ( e de boa saúde , ao que me consta ) provenientes da Aviação Naval .

Um Dia no Escritório

Tripular um Boeing 314 era um exercício de complexidade e concentração que exigia conhecimentos profundos em vários domínios , além de uma considerável resistência física . Como se constata ne imagem de cima , "eram 22 horas até Lisboa , mais sete até Marselha" , frequentemente em condições meteorológicas adversas e recorrendo a instrumentação ainda muito pouco evoluída . Repare-se no painel central do cockpit , onde os instrumentos mais em evidência são o "turn and bank indicator" ( vulgo "pau e bola" ) e um rudimentar horizonte artificial .
Na fotografia intermédia podem ver-se o radiotelegrafista , à esquerda , e o mecânico de voo ( flight engineer ) , cujas funções eram , respectivamente , manter contacto com as estações de comunicações através de código Morse e rádio , e controlar os sistemas do avião monitorando pressões de óleo e rotações dos motores , equilibrar o combustível nos tanques e distribuir a produção eléctrica dos geradores associados a cada motor , além de muitas outras tarefas . Como já foi dito , o mecânico tinha acesso aos quatro motores em voo , através de um pequeno "túnel" que corria ao longo da asa . Imagino que tal procedimento não deveria fazer as delícias dos tripulantes envolvidos , quer pelo ruído ( mais de seis mil cavalos a "roncar" , em simultâneo ) quer pelas vibrações transmitidas à estrutura .
Finalmente , pode ver-se o navegador no seu posto de observação , tentando determinar a posição do avião .
Na actual geração de aviões comerciais os lugares de navegador , mecânico e radiotelegrafista foram extintos , sendo as suas funções desempenhadas pelos pilotos e por sistemas informáticos de grande precisão . Inquestionavelmente , os aviões tornaram-se mais seguros mas os cockpits são hoje lugares solitários onde o tempo demora demasiado a passar .





A Recuperação dos Destroços






















Imagens dos trabalhos de recuperação dos destroços do Yankee Clipper obtidas nos dias seguintes ao acidente. Gentileza da Administração do Porto de Lisboa.



A Aviação e o Tejo , por António Rúbio

" ... Tudo começou no século XVIII com o padre Bartolomeu de Gusmão e a sua Passarola que dariam muito que falar . Quanto à veracidade das evoluções do aeróstato no Terreiro do Paço, gravuras existem - muitas da Passarola - e alguns relatos , também . Portanto aceitemos a verdade histórica sem o rigor da pesquisa profunda, que já foi feita mas não levou a conclusões concretas.A primeira viagem aérea realizada em Portugal foi feita por um capitão italiano de nome Vicente Lunardi em 24 de Agosto de 1794 e teve como pano de fundo o rio Tejo. Lunardi também usou o Terreiro de Paço como base para a ascensão do seu balão, dando pois o privilégio a esta praça de ter testemunhado o primeiro voo de balão no nosso território.Guilherme Eugénio Robertson, aeronauta e malabarista apareceu por Lisboa e , com grande impacto e estupefacção do povo , fez o primeiro salto de pára-quedas visto por cá, saltando dum balão. Estávamos em 1819, e no ano seguinte Robertson repetiu a proeza no Porto.Depois , muitas ascensões foram vistas por Lisboa, inclusivé do primeiro aeronauta profissional português, António Infante . Também Augusto Abreu de Oliveira , Gouveia Pinto e Belchior Fonseca tiveram oportunidade de mostrar as suas capacidades .Já no século XX, António da Costa Bernardes o “Ferramenta”, tornar-se-ia muito conhecido, tendo chegado a exibir-se no Brasil.As primeiras tentativas de voo em Lisboa com aviões também tiveram o Tejo como fundo. O francês Armand Zipfel , em 1909, não passou das tentativas mas Julien Mamet em 27 de Abril de 1910 faz o primeiro voo de avião em Portugal, no campo do Hipódromo de Belém, bem perto do rio...João Gouveia, grande entusiasta da aviação, tentaria no Seixal fazer voar um avião por si inventado , ao mesmo tempo que poria no ar os seus modelos reduzidos, sendo o nosso primeiro aeromodelista.Com o passar dos anos a nossa aviação foi tomando forma e entre a Escola de Aeronáutica Militar , em Vila Nova Da Rainha , e o Centro de Aviação do Bom Sucesso (Aeronáutica Naval), sucederam-se os “brévets”, as largadas, os primeiros aviões de guerra, e os primeiros recordes de velocidade, altitude, planagem, etc..
A primeira Guerra Mundial, trouxe um grande desenvolvimento à nossa aviação, com a preparação dos nossos pilotos em França e em Inglaterra e o contacto com máquinas muito mais possantes que formariam os antecedentes de toda uma epopeia de viagens de ligação da Metrópole às ilhas adjacentes e às colónias africanas e orientais.Em 1920, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, fazem a ligação à Madeira no recém adquirido hidroavião Felixtowe, um bimotor com um raio de acção praticamente à conta para a viagem . Nas instalações aeronavais de S. Jacinto, em Aveiro, o avião foi reduzido ao mínimo peso para poder descolar da doca do Bom Sucesso a caminho do Funchal. A viagem foi um êxito, permitindo a Gago Coutinho testar os seus instrumentos de navegação e ao tenente Ortins Bettencourt fazer também experiências de comunicações via rádio.A 30 de Março de 1922, o hidroavião monomotor, “Lusitânia” descola do Tejo para a maior epopeia da aviação nacional, a travessia do Atlântico Sul.Com esta viagem os inventos e aperfeiçoamentos dos sistemas de navegação aérea de Gago Coutinho, viriam a dar um grande impulso a toda a aviação internacional, permitindo o desenvolvimento das viagens de longo curso e sobretudo a navegação sobre o mar , diurna e nocturna.Nos anos que se seguiram , muitos outros aviadores nacionais partiriam do rio para grandes viagens, muitas delas tão ou mais complicadas do que a de Gago Coutinho e Sacadura Cabral.A viagem do “Argus” , a tentativa de um voo de circum-navegação aérea , foi uma autêntica luta contra as adversidades ,de tempestades a problemas técnicos , só tendo derrotado os heróicos Sarmento de Beires, Jorge Castilho e Manuel Gouveia, quando ao largo da Guiana o hidroavião Dornier se afundou , não dando hipótese de continuação duma viagem que já ia em 16.000 Kms .Sarmento de Beires e Jorge Castilho, já tinham feito a ligação Lisboa/Macau em viagem anterior mas com escalas em terra.A base da Aviação Naval , como é evidente , nunca saiu do Tejo, mas o Centro do Bom Sucesso em Belém, mudou para o Montijo, onde os hidraviões puderam conviver com os aviões convencionais . Esta base aérea ainda hoje existe no mesmo local, pertencendo agora á Força Aérea após o encerramento da Aviação Naval.
O Tejo foi também palco das amaragens e descolagens dos grandes hidroaviões das companhias de aviação comerciais . A travessia do Atlântico Norte trouxe aos Açores e a Lisboa as escalas mais importantes dos hidros da Pan American.A base desta transportadora era a doca de Cabo Ruivo, onde hoje está o Parque das Nações e mais propriamente o Oceaneário.Infelizmente, nos anos quarenta, houve um acidente com uma destas aeronaves aqui no Tejo. Uma das vítimas foi a cantora Jane Fromman, muito popular nos Estados Unidos, tendo a sua recuperação sido tema dum filme com a actriz Suzan Hayward. Deste filme surgiu uma canção que correu o mundo “I will Walk Alone”.A companhia de aviação inglesa “Aquila Airways”, fazia as ligações de Lisboa ao Funchal com hidroaviões . Esta companhia deixou de operar entre a Madeira e o Continente nos anos cinquenta. Os hidroaviões morreram na doca de Cabo Ruivo, de parceria com os de uma efémera companhia nacional, a “Artop”, tendo desaparecido um avião logo num dos primeiros voos, morrendo todos os passageiros e tripulação.
Foi pois o Tejo parte integrante da epopeia aérea portuguesa . As suas águas calmas e o seu enorme estuário, deram azo à utilização dos aviões de primeira geração, os hidroaviões, que podiam sempre recorrer à amaragem nas etapas onde não havia o apoio de campos de aviação.

"António Rubio

Previsões Meteorológicas

Em 1943 a meteorologia estava longe de ser uma ciência exacta ( ainda hoje não o é , embora seja muitíssimo mais fiável do que então ) , como se demonstra por esta previsão do Serviço Meteorológico do Exército inserida na edição do Diário de Lisboa de 22 de Fevereiro , véspera do acidente . De acordo com as notícias publicadas na imprensa da época , na altura dos factos Lisboa estava debaixo de uma forte trovoada , circunstância que , à luz dos conhecimentos actuais , poderia ter contribuido para este trágico desfecho .
A ocorrência de "downbursts" , rajadas fortíssimas de vento dirigidas "de cima para baixo", em situações de violentas tempestades ( cumulonimbos ) , é hoje um facto claramente demonstrado e que se julga ter causado uma série de acidentes fatais nos últimos trinta anos . Em linguagem aeronáutica recente este fenómeno é conhecido por "windshear" ( mudança súbita e brutal da direcção do vento ) , condição que pode tornar qualquer avião virtualmente incontrolável .
Nas últimas décadas foram desenvolvidos equipamentos e técnicas de pilotagem que permitem minimizar as consequências deste tipo de rajadas , mas a regra básica continua a ser evitar operar sob este género de fenómeno meteorológico . Se possível , claro .

O Cockpit do Boeing 314

Habitualmente , nas rotas transatlânticas , o Boeing 314 era tripulado por dez "aviadores" : Comandante, três pilotos , dois mecânicos , dois navegadores e dois radio telegrafistas . Para o serviço aos passageiros havia dois ou mais comissários de bordo, variando conforme as necessidades.
O cockpit do B314 era muito espaçoso , com cerca de sete metros de comprimento e três de largura , algo completamente impensável nos dias de hoje , e dividia-se em dois compartimentos : o cockpit propriamente dito , onde se sentavam os dois pilotos de serviço , e uma verdadeira sala de operações destinada à navegação e comunicações . Por trás dos pilotos era possível correr uma cortina para evitar que , durante a noite , a luz desta sala perturbasse a boa condução do voo , e havia também um alçapão que lhes dava acesso ao compartimento de carga de proa .
A mesa do navegador ( em pé , na foto ) tinha dois metros de comprimento , para permitir que as enormes cartas de navegação da época pudessem ser convenientemente estendidas e , a seguir a esta ( foto em baixo ) havia o luxo de uma pequena mesa para conferência ou tomada de refeições . Junto pode ver-se , à direita , uma pequena escotilha oval que dava acesso ao interior da asa e permitia ao mecânico fazer algumas reparações de emergência nos quatro motores do aparelho , umas "monstruosidades" com mais de 1,600 cavalos cada .
À esquerda , na imagem , fica a mesa do radiotelegrafista , responsável pelos contactos com as estações de controle que ia encontrando ao longo da viagem .
A navegação era feita através de um posto de observação ("bolha") situado no topo do Boeing , e o navegador utilizava um sextante para medir a altura dos astros , leitura que depois comparava com as tabelas existentes a bordo para determinar a posição da aeronave . No entanto , por vezes não era possível realizar estas tarefas devido à presença de nuvens , o que levava à utilização do falível método de "dead reckoning" , que consistia em manter constantement um rumo previamente calculado . O problema é que o vento , quando era forte , "empurrava" completamente o avião para longe da rota desejada . Para compensar este efeito e para avaliar a direcção e intensidade do vento , o navegador lançava para o exterior , através de uma pequena escotilha , um sinal luminoso ( flare ) e depois observava para que lado e a que distância é que ele caía , em relação à cauda do aparelho . Por este método empírico era possível estimar a "deriva" ( correcção ao vento ) e prosseguir viagem com um mínimo de fiabilidade em termos de navegação . Claro que , nesta época , desvios de navegação da ordem dos quarenta ou cinquenta quilómetros eram considerados "normais" , o que diz bem da fiabilidade dos sistemas actuais ( GPS) , cuja eficácia é avaliada em ( poucos ) metros .