Blogue do livro "Na Rota do Yankee Clipper" - de José Correia Guedes @ Chiado Editora, Lisboa. Dezembro de 2012.

Revista de Marinha , 1939

 
"Mercê dos esforços realizados pela Sociedade Técnica e Marítima , representante em Portugal da Pan American Airways, Lisboa tem tem desde há pouco uma base aero naval em Cabo Ruivo , destinada aos hidro-aviões das carreiras transatlânticas . De uma visita demorada que ali fizemos colhemos as melhores impressões . Acompanhou-nos o sr engº Pedro Pinto Basto , infatigável e dedicado organizador dos serviços da "Pan American" em Lisboa . Aos trabalhos de construção da base aero naval de Cabo Ruivo presidiu o bom gosto , a singeleza e a segurança . Tudo quanto de mais moderno existe em aparelhagem de protecção à navegação aérea e em material para a amarração e reabastecimento  está reunido naquela base . E , pormenor curioso : as instalações de terra foram desenhadas segundo o velho estilo português , o que é deveras interessante para o passageiro que , vindo da América do Norte , desembarque em Lisboa .
O porto de protecção à navegação tem os requisitos mais modernos , para acompanhar seguramente a marcha dos aviões sobre o Atlântico . Constantemente o aparelho está em contacto com a base e , de trinta em trinta minutos , regista-se num mapa a sua localização . Já sobre Lisboa , no período que antecede a amaragem e em caso de necessidade , o piloto entra em contacto com o chefe da aero base por intermédio de rádio telefone. Assim , a pessoa que conhece bem o local de amaragem e os cuidados necessários para a acostagem ao cais flutuante , fornece todas as indicações para bordo .
O cais flutuante , de trinta metros , prolongamento natural duma ponte de 161 metros , proporciona a acostagem dos hidro-aviões em três sentidos , consoante a direcção do vento . Em pleno rio , em frente ao cais flutuante , há três bóias de amarração ligadas entre si e ao cais por fortes cabos de aço , de forma que essa manobra pode fazer-se com os recursos de bordo dos aparelhos . Mas , apesar disso , a base tem um gasolina a dois motores , com rádio , telefone e serviço de extinção de incêndio , que pode colaborar na manobra de amarração . Para o caso de uma amaragem de noite , o gasolina tem potentes holofotes e as bóias são iluminadas . Destinados ao reabastecimento dos aparelhos existem dois depósitos subterrâneos com 15.000 litros cada . O pleno executa-se com extrema facilidade , por intermédio dum tubo que vai dos depósitos até ao cais flutuante e , por conseguinte , ao aparelho .
Uma bomba accionada electricamente dá vasão à gasolina à razão de 380 litros por minuto . Na base existe um armazém com todas as peças sobressalentes que fazem parte dos potentes hidro-aviões Boeing 314 de que o magnífico Yankee Clipper que nos visitou é um magnífico exemplar . A base fica próximo da estação de caminho de ferro de Cabo Ruivo e , incluída no plano de urbanização da Portela de Sacavém , onde está a ser construído o aeroporto de Lisboa , há uma estrada que estabelece fácil ligação entre os dois centros aeronáuticos.
O Conselho do Ar aprovou o estabelecimento da base de Cabo Ruivo e determinou que ela possa ser utilizada por todos os hidro-aviões mesmo de outras empresas , o que é bem o reconhecimento do bom trabalho levado a efeito pela Sociedade Técnica Marítima .""
Revista de Marinha , 1939 . Colaboração de Albino Gomes , a quem agradeço .


Cockpit

Curioso diagrama com a descrição do cockpit do Boeing 314 , onde são assinalados os lugares dos vários tripulantes em serviço . As generosas dimensões do espaço ( 7 metros de comprimento , 3 de largura ) seriam impensáveis nos tempos que correm , por razões de ordem comercial , mas contribuiram na altura para tornar menos penosas as longuíssimas viagens dos "Clippers" . Para a tripulação e para os passageiros , que frequentemente eram autorizados a visitar esta parte do aparelho .

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Transporte de Correio

O transporte de correio tornou-se numa das principais fontes de financiamento das companhias de aviação e , nalguns casos , mais do que justificava a exploração de novas linhas . Lisboa , pela sua localização geográfica e pela neutralidade de Portugal durante a II Guerra Mundial , tornou-se num entreposto por onde transitava correio proveniente dos países beligerantes , com as evidentes vantagens financeiras que tal estatuto proporcionava .
Após o acidente do Yankee Clipper , em Fevereiro de 1943 , noventa e três sacos de correio foram retirados do rio Tejo , o que dá uma ideia da quantidade de correspondência transportada em cada viagem dos Boeing 314 .

Reportagem

Imagens do arquivo fotográfico de "O Século" , disponível na Torre do Tombo . Na primeira vê-se uma equipa de socorro a chegar ao Hospital de S. José com um dos sobreviventes do acidente do Yankee Clipper . Na outra , está um jornalista de "O Século" a entrevistar dois funcionários da Pan Am que foram as primeiras pessoas a chegar ao local da tragédia e a prestar auxílio às vítimas .
Na altura alguns dos feridos queixaram-se da precaridade dos serviços médicos prestados pelas autoridades portuguesas .
PS - tudo leva a crer que a imagem inferior esteja "invertida" , ou seja , produzida a partir da face errada do negativo . As letras PAA do fato-macaco estão ao contrário e o jornalista escreve com a mão "esquerda" , facto impensável na época .


O Rio Tejo vs Rio Hudson

Pedem-me uma comparação entre a feliz amaragem de um A320 no rio Hudson , na semana passada , e a tragédia do Yankee Clipper no rio Tejo , em 1943 . Óbviamente , só a nível de especulação é possível estabelecer paralelos entre dois eventos separados por 65 anos mas , no entanto , alguns princípios básicos permanecem inalterados .
No acidente de Lisboa , o Yankee Clipper tinha os motores em funcionamento e não era conhecida qualquer avaria que pudesse conduzir ao acidente . Segundo testemunhas oculares e relatos de sobreviventes , instantes antes de amarar o hidroavião da Pan Am inclinou-se ligeiramente para a esquerda , fazendo com que a ponta da asa do mesmo lado entrasse nas águas do Tejo , transformando-a em catapulta . A violência do impacto descontrolado provocou graves lesões traumáticas nalguns passageiros e a desintegração do aparelho . Para agravar a situação , não havia na zona qualquer meio de salvamento ( Portugal , anos 40 ... ) e apenas uma pequena lancha de serviço à Pan Am pode prestar algum auxílio às vítimas até que chegassem os bombeiros , também eles impreparados para um acidente deste tipo . Morreram 24 pessoas , 15 sobreviveram , algumas com graves lesões permanentes .
No rio Hudson tudo foi diferente . O Airbus tinha perdido os motores após uma colisão com um bando de pássaros e não teve outra opção senão aterrar no rio . O "checklist" que aqui junto ( parcial e desactualizado) pertence a um avião do mesmo tipo e serve para dar uma ideia dos procedimentos a executar numa situação deste tipo . Óbviamente , há items que que não podiam ser tidos em conta , tais como a direcção e altura das vagas , intensidade do vento , etc , uma vez que não havia forma de controlar o avião sem recurso aos motores , mas há outros que foram rigorosamente observados e levaram ao sucesso da operação . O principal foi "minimize roll" , ou seja , as asas permaneceram igorosamente niveladas na horizontal até ao momento do impacto na água . Os flaps também foram activados para configuração de aterragem e o trem foi mantido recolhido , como manda o checklist . Depois , foi a eficácia da evacuação por parte do pessoal de bordo , que teve uma participação fundamental no salvamento dos passageiros , isto para além da resposta imediata por parte dos serviços de emergência e da ajuda prestada por vários barcos que se encontravam nas imediações .
A última alínea deste checklist garante que a saída mais baixa do avião ( a porta de embarque traseira ) ficará durante mais de sete minutos acima da linha de água , após a amaragem . Não tenho forma de confirmar este facto , mas pelas imagens que vi , não me pareceu que fosse o caso . De qualque forma , há que enaltecer o trabalho correcto e profissional da tripulação e a extraordinária qualidade de construção do A320 .
No caso do acidente do Yankee Clipper no Tejo , o comandante , que foi um dos sobreviventes , foi considerado culpado . Humilhado e desgostoso , abandonou a Pan Am e o seu país de origem , os Estados Unidos , onde nunca mais voltou .
Herói ou vilão , as alternativas que o destino oferece a quem anda nesta vida .






Voar Baixinho

Por vezes , o Yankee Clipper era forçado a voar a muito baixa altitude , nomeadamente por razões de ordem meteorológica , operação delicada que requeria grande precisão e envolvia riscos consideráveis . Veja-se , por exemplo , esta pequena parte de um relatório do comandante do navio de guerra inglês HMS Avon Vale , em serviço de escolta ao combóio mercante HG70 , entre Gibraltar e Liverpool , em Agosto de 1941 .
"Às 20.00 horas desse dia , na posição 38 02 N / 12 06W , foi avistado um avião voando perigosamente próximo dos navios , mas o Yankee Clipper com destino a Lisboa apercebeu-se a tempo dese facto . Mais tarde , às 23.08 , foi avistado o vapor portugês Colonial , no rumo 225 e dirigindo-se também para Lisboa".

www.warsailors.com

Visita de Lindbergh à Horta

Fotografia de Charles Lindbergh , então uma celebridade mundial , ao ser recebido pelas autoridades locais no porto da cidade da Horta , durante a sua visita exploratória em Novembro de 1933 . Depois de visitar a Horta e Ponta Delgada , Lindbergh acabou por recomendar a primeira como detendo a baía mais adequada à futura operação dos Clippers . Mesmo assim , e como já foi dito , eram relativamente frequentes os dias em que a descolagem/amaragem dos aviões era impedida pela ondulação , uma vez que os aparelhos estavam proibidos de operar com vagas superiores a um metro. Por vezes , tripulantes e passageiros passavam vários dias na Horta à espera que o mar acalmasse para poderem seguir viagem .

Fotografia retirada do livro "Apontamentos para a História da Aviação nos Açores " , de Carlos Ramos da Silveira e Fernando Faria . Agradeço ao leitor Carlos Medeiros a gentileza da oferta .

"O Volante"

Notícia do acidente do Clipper , aparecida no jornal "O Volante" em Março de 1943 . Esta era uma publicação dedicada essencialmente a assuntos relacionados com automóveis e aviões , que conheceu apreciável sucesso , na época . Mais tarde viria a dedicar-se a acompanhar o desporto automóvel em Portugal , tornando-se no semanário de referência , na matéria , no início da década de 70 .

Radiografia de um Avião

Curioso diagrama que revela a grande solidez estrutural do Boeing 314 que , de resto , adoptou o desenho das asas e os motores que tinham préviamente sido concebidos para o bombardeiro estratégico XB-15 . Podem ver-se , também , o perfil de cauda central , que era fixo , e um dos dois perfis laterais , que eram móveis ( lemes de direcção ) . Na vista frontal estão patentes os dois "sponsons" horizontais , destinados a estabilizar o aparelho na água e a transportar combustível .

Lindbergh nos Açores

Charles Lindbergh , depois de ter realizado o primeiro voo transatlântico , em 1927 , tornou-se consultor da Pan Am dois anos depois , com a missão de contribuir para a exploração de novas rotas , testar novos aviões e aconselhar Juan Trippe , o presidente da companhia , em todos os asuntos de cariz operacional . Assim , em 1933 , Lindbergh e sua mulher , Anne Morrow , partiram para uma viagem exploratória até à Europa , a bordo de um Lockheed Sirius 8 com a matrícula NR211 , a mesma do "Spirit of St Louis" . Naturalmente , o arquipélago dos Açores , pela sua situação estratégica , foi desde logo considerado como opção para qualquer rota transatlântica e isso levou o casal Lindbergh a fazer uma visita para explorarem possíveis locais de aterragem .É nesse contexto que surgem estas imagens de Charles Lindbergh a desembarcar em Ponta Delgada , vendo-se também o Lockheed Sirius "ancorado" em plena baía , com escolta de dois navios da Marinha de Guerra .
O casal Lindbergh chegou a 21 de Novembro de 1933 ao Faial e dois dias depois a Ponta Delgada . Daqui partiram para as Canárias , com passagem pela Madeira .
Segundo o jornal "Correio dos Açores" de 24/11/1933 , Anne Morrow e Charles Lindbergh ficaram alojados na residência do Consul dos Estados Unidos em Ponta Delgada .



Agradeço ao leitor José Toste Rego , de Ponta Delgada , as preciosas imagens que teve a gentileza de me enviar , bem como a pesquisa bibliográfica .
O Lockheed Sirius modelo 8 com que Lindbergh e Anne Morrow fizeram a viagem . Não é conhecido o local onde a fotografia foi obtida .

Relatório Flight Safety Foundation

A Flight Safety Foundation é uma organização internacional cujo objectivo é melhorar a segurança no transporte aéreo . Nesse sentido , promove a análise e discussão dos acidentes ocorridos no sentido de procurar as suas causas e fazer recomendações para os evitar , no futuro . Aqui fica o resumo do relatório da FSF sobre o acidente do Yankee Clipper em Lisboa .
Accident description
Status:Final
Date:22 FEB 1943
Time:18:47 UTC
Type:Boeing 314A
Operator:Pan American World Airways
Registration:NC18603
C/n / msn:990
First flight:1939
Total airframe hrs:8505
Engines:4 Wright 332C-14AB1
Crew:Fatalities: 5 / Occupants: 12
Passengers:Fatalities: 19 / Occupants: 27
Total:Fatalities: 24 / Occupants: 39
Airplane damage:Written off
Airplane fate:Written off (damaged beyond repair)
Location:near Lisboa (Portugal)
Phase:Approach (APR)
Nature:International Scheduled Passenger
Departure airport:Horta Airport (HOR/LPHR), Portugal
Destination airport:Lisboa-Portela de Sacavém Airport (LIS/LPPT), Portugal
Narrative:Crashed while attempting to land when the left wingtip of the aircraft contacted the water of the River Tagus during a descending turn.
PROBABLE CAUSE: "An inadvertent contact of the left wing tip of the aircraft with the water while making a descending turn preparatory to landing."
Sources: » CAB File No. 2143-43
Statistics
The first loss of a Boeing 314
The worst accident involving a Boeing 314 (at the time)
The worst accident involving a Boeing 314 (currently)
The worst accident in Portugal (at the time)
10th worst accident in Portugal (currently)

Painel de Instrumentos do B314

Era relativamente simples o painel de instrumentos dos pilotos do B314 , como se pode ver pela imagem junto e pela legenda que consta do Manual de Voo fornecido pela Boeing . Assim , no painel do lado do comandante , à esquerda , podem ver-se , em cima , o velocímetro , o célebre "pau e bola" ( indicador de volta ) e o variómetro , que indica as razões de subida ou descida . Por baixo , vemos o horizonte artificial , o indicador de direcção ( directional gyro ) e o altímetro . No lado do copiloto estes instrumentos repetem-se . No painel central , em cima , estão os indicadores de "manifold pressure" e os conta-rotações dos quatro motores , imediatamente por cima do Sperry Gyro Pilot , um embrião de piloto automático . Podem ver-se ainda um relógio , o indicador de posição dos flaps , indicador de temperatura do ar e indicadores de pressão de óleo . Cada piloto dispõe ainda de uma bússula magnética situada no seu painel e de um botão , colocado no "manche" , que serve para acender e apagar a luz dos respectivos instrumentos .

Ainda os Comissários

Afinal , os Comissários de Bordo dos Clippers tinham ainda mais tarefas do que as muitas e difíceis já aqui enumeradas . Vejam só o que sobre eles diz o diário pessoal de um mecânico de voo dos Boeing 314 da Pan Am .
" Uma parte significativa da reputação da Pan Am era devida à qualidade do nosso serviço de bordo . No B314 , os comissários frequentemente escolhiam a comida , cozinhavam e serviam os pratos em mesas postas com toalhas de linho e dotadas com talheres de prata especialmente desenhados para estas circunstâncias . Nós , os mecânicos , tínhamos boas relações com eles porque éramos regularmente chamados a reparar avarias nas galleys ( cozinhas ) , desentupir os esgotos dos WC e tínhamos também a responsabilidade de manter uma temperatura agradável na cabina de passageiros . Os comissários eram sempre do sexo masculino , pelo menos até ao final da Segunda Guerra , e estavam preparados para colaborar com os mecânicos quando houvesse necessidade de mudar um motor , por exemplo . Tinham também a seu cargo toda a documentação de bordo e eram responsáveis pelas formalidades alfandegárias da tripulação , tendo por vezes necessidade de subornar alguns funcionários locais para acelerar todo o processo de entrada nalguns países . Uma vez que os comissários , devido às suas funções , tinham muitos conhecimentos em terra , a qualidade das estadias dos outros tripulantes numa cidade "de homens" como Lisboa , dependia do bom relacionamento que com eles pudessem ter . Conheciam toda a gente !"